O que aconteceu com a correção e a coerência? Corro o risco de ser tido como tolo ou ultrapassado, “um careta”, preocupado com velharias fora de moda, mas indago. Sim, pois correção e coerência, por definição, deviam andar juntas, orgulhosas por uma se ajustar à outra na coesão absoluta de uma linha reta para uma vida reta.
Cada vez mais, porém, ambas se dissolvem no ar e desaparecem. Na vida pública, por exemplo, o êxito passou a estar com os incoerentes. Com os que tudo falsificam e em que tudo é postiço, como aqueles cílios enormes que, antes, as mulheres usavam em festas para sobressair sobre o vestido de gala e mostrar que tinham olhos atrás da pintura do “rímel”.
Há muito, porém, o postiço deixou de ser inocente ardil feminino para atrair atenção. Hoje, a falsificação em si domina a política e a administração. O abraço e o olhar são tão falsos quanto as palavras das promessas. Acenam com um futuro dourado e a propaganda induz nossa boa-fé inocente a pensar que papelão pintado é ouro.Congruência ou incongruência já não têm significado e desapareceram do mapa. Ou diluíram-se pelo espaço em direção a outra galáxia.
Vivemos na letargia. A preguiça de pensar, raciocinar, indagar e debater nos confina a um mundo que não vai além do nariz. E, por melhor olfato que tenhamos, não notamos os miasmas da cloaca imensa que corre pelo país e só nos ocupamos com o minúsculo mundo ao nosso redor.
Em que ficaram os escândalos do Senado? Um ano atrás, as falcatruas soavam como trovão e todos pediam um “basta” ou, até, exigiam punição àquela orgia de apadrinhamento e corrupção. Já ninguém se lembra de nada. Os três senadores gaúchos (que, antes, nunca discordaram dos gastos imorais praticados pela direção do Senado), nem sequer se penitenciaram por terem silenciado quando deviam ter denunciado. Agora, calaram-se de vez. Pertencem a partidos da “base aliada” federal e isso pesa na amnésia.
E a amnésia é geral. Ninguém recorda os escândalos caseiros do Rio Grande do Sul. A roubalheira milionária no Detran revelou tentáculos de um monstro dedicado ao delito nas entranhas do governo estadual, mas tudo é olvido. Cada escândalo novo apaga o anterior, numa sucessão infinita cujo teto é a impunidade.Nexo, congruência, coesão passaram a coisas sem sentido, totalmente fora da vida.
Até no setor privado, na economia da livre-concorrência, em que triunfava quem tivesse melhor desempenho ou fabricasse o produto mais durável e resistente, também se instalou o falso. Semanas atrás, o “escândalo da Toyota” abalou o Japão e tocou no cerne da ancestral cultura nipônica – a honra pessoal, levada ao trabalho e transformada em compromisso da empresa com a sociedade, fora deixada de lado pela grande produtora de veículos.Mas lá, pelo menos, os responsáveis se retratam, reconhecem os erros em público, pedem “perdão” à sociedade. (Antigamente, os japoneses faziam o “hara-kiri”, cortando o próprio ventre para que as vísceras saltassem em sinal de culpa.)
Também aqui, em certas áreas privadas, tudo muda e o “faz de conta” passa a valer como verdadeiro, sem distinguirmos o autêntico do falsificado. Na alimentação, por exemplo, o benéfico e o nocivo se confundem e nos suicidamos a cada dia nas prateleiras dos supermercados.A confusão entre verdade e mentira, que domina a política, instalou-se no cotidiano. Cuidemos para que as dores do Senado não virem telentrega a domicílio.
*Jornalista e escritor
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